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Empresas usam CLT para delegar indenizações
O Ministério Público do Trabalho (MPT) identificou um aumento no número de demissões associado a um refluxo na adesão às Medidas Provisórias 927 e 936, que mitigaram direitos trabalhistas durante a pandemia em troca da manutenção de emprego.A ocorrência de demissões teria se intensificado depois dos encontros do presidente da República com empresários, primeiro no dia 7 de maio e o outro na semana passada. A onda de desligamentos é liderada por empresas que se eximem de pagar indenizações aos trabalhadores e as delegam a governadores e prefeitos.
O primeiro grande grupo empresarial a inaugurar esta onda foi a rede de restaurantes Fogo de Chão, que tem unidades em São Paulo, Rio e Brasília, além de mais de 40 no exterior.O grupo, que tem capital aberto na bolsa de Nova York, aderiu à dica do presidente Jair Bolsonaro que, no dia 27 de março, no auge de sua briga com os governadores, provocou: “Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito”.
Sete dias depois, o grupo, que hoje pertence à gestora de investimentos Rhône Capital, fez as primeiras demissões, no Rio, com um comunicado de rescisão do contrato de trabalho que fazia referência a decreto do governador Wilson Witzel e citava o artigo 486 da CLT, mencionado pelo presidente:“No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”.
A empresa se negou a dar mais informações sobre as demissões, que afirma terem chegado a 439 funcionários no Rio, em São Paulo e em Brasília e se limitou a soltar uma nota:“Reforçamos que atuamos seguindo as normas do artigo 486 da CLT indenizando os membros da nossa equipe de acordo com a lei, para que todos tivessem acesso ao pagamento de férias e 13º salário, além do acesso ao Fundo de Garantia e Seguro Desemprego. A expectativa do Fogo de Chão Brasil é, à medida que os restaurantes reabram e a economia melhore, r
O consultor sindical João Guilherme Vargas Neto atribui demissões como a do grupo Fogo do Chão à segunda onda de mitigação de direitos trabalhistas iniciada pela publicação das MPs 927 e 936, que podem vir a ser superadas pelo que chama de “selvageria do caos social com demissões em massa”, antes mesmo de serem aprovadas.
Três escritórios de advocacia reportam consultas de empresas que alegam falta de condições financeiras de aderir à MP 936 (redução de jornada e trabalho) e manifestaram interesse em seguir o mesmo rumo do grupo Fogo de Chão.Há, pelo menos, uma decisão da Justiça do Trabalho (processo nº 0000212.51.2020.5.050003), em Salvador, que rejeitou o uso do artigo da Consolidação das Leis do Trabalho para embasar demissões.
As consultas e a decisão judicial giram em torno de dois conceitos da CLT, o “fato do príncipe”, ou seja, a decisão dos governantes nesta pandemia (artigo 486), e o motivo de “força maior” (artigos 501 a 504), caracterizado pela decretação de calamidade pública.
No dia 30 de abril, a juíza do trabalho Isabella Borges de Araújo, de Salvador, decidiu pela reintegração de dez funcionários de uma empresa de transportes, demitidos sem aviso prévio ou multa de 40% sobre o FGTS sob alegação de que teriam ocorrido por “fato do príncipe”.A empresa em questão fez as demissões apesar de ter aderido à Medida Provisória 936, que permite redução de jornada e trabalho em troca de garantia de emprego.
A advogada Juliana Bracks não orientou seus clientes a se valer do artigo 486 da CLT e não vê, na advocacia, predisposição para dar curso a ações nele baseadas, mas diz que as empresas não desistirão.Na Bracks Advogados, a orientação é que as empresas chamem o sindicato e negociem o parcelamento da rescisão, mas Juliana se recusa a endossar a demanda das empresas como absurda.
“É uma matéria controvertida, mas tem empresário com faturamento zero desde março e aí olha para os lados e vê shoppings fechados, o Judiciário com funcionamento presencial só a partir de 2021 e o comércio sem previsão de voltar a funcionar em muitos lugares. O que ele faz se não tem como aderir às MPs?”
O artigo 486 atribui o pagamento da indenização ao governo responsável pela interrupção da atividade mesmo quando esta for temporária, mas a jurisprudência tem adotado outra interpretação para o “fato do príncipe”.Só o acolhe em situações definitivas como desapropriação do terreno ou do imóvel em que funcione uma atividade que, assim, fica impedida de ter continuidade.
Foi o que argumentou a advogada Dania Fiorin Longhi num parecer recente para uma empresa da área de alimentação. “É o motivo de força maior que se impõe hoje, não é o fato do príncipe”, diz Dania, remetendo-se à MP 927, que estabelece as mudanças trabalhistas sob a calamidade pública da pandemia.
A advogada e professora de direito do trabalho da PUC-SP, sócia do Abud Marques Sociedade de Advogadas, Fabíola Marques, também desaconselhou um cliente que chegou a fechar as portas a aplicar o artigo 486 da CLT.Em sua interpretação e da doutrina, só poderia se aplicar o dispositivo, se a medida do governo causasse prejuízo específico a determinada empresa, o que não ocorre, pois todos foram afetados pela pandemia.
O que seria diferente, afirma, se a suspensão da atividade fosse motivada por uma desapropriação - que seria específica. “Por previsão da própria CLT, a responsabilidade pelo risco da atividade é do empregador, que não pode passá-lo para o Estado”, diz.
A perspectiva de as empresas se apegarem a uma interpretação do artigo 486 da CLT distinta daquela da jurisprudência deve levar a uma nova nota técnica do Ministério Público do Trabalho.No dia 5 de maio, 18 procuradores do trabalho assinaram nota em que citam os artigos da CLT relativos aos motivos de força maior para a demissão, que autorizam a redução pela metade da multa do FGTS como única mitigação de direito trabalhista. A nota margeia o 486, sem citá-lo, ao dizer que nem a extinção da empresa justifica o não pagamento das indenizações trabalhistas.
O procurador do trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, da 24ª Região, diz ser defensável a tese de que o conflito das autoridades é tamanho que a empresa não tem como retomar suas atividades. Pondera, porém, que a tese dificilmente teria acolhimento nos tribunais.O procurador Marcelo José Fernandes da Silva, da 1ª Região, com base numa interpretação criativa do “fato do príncipe”, propôs uma ação civil pública para bloquear, preventivamente, R$ 500 bilhões das reservas internacionais do país para garantir pagamento de salários. A ação não teve seguimento.
FONTE:VALOR ECONÔMICO